Mais privilégios para uma Justiça já obesa

Publicado em 19/05/2024 as 12:05

Se, como propôs René Descartes, os sentidos nos enganam, podemos confiar nas informações que recebemos através deles? Em situações em que dificilmente podemos ser enganados, o aforismo “Uma imagem vale mais que mil palavras”, atribuída ao filósofo chinês Confúcio, nos ajuda a entender o poder da comunicação visual.

E nada ilustra com mais precisão a Justiça no Brasil – inchada, lenta, viciada e repleta de privilégios – do que uma escultura de Jens Galschiøt instalada na praça da prefeitura de Fredericia, no sul da Dinamarca. A obra retrata uma mulher obesa, mórbida, de olhos cerrados, segurando uma balança menor que seus seios volumosos, sendo carregada sobre os ombros de uma pessoa miserável, magra, de olhos fundos e de estatura menor que o cajado que sustenta a pesada senhora.

Tudo naquela imagem icônica é maior que o cidadão comum, exceto a balança, é claro. O imenso cajado, simbolizando o Estado, está à vista do ser faminto por justiça, mas parece distante dele. Talvez essa seja uma boa razão para oito em cada dez brasileiros serem contra a “PEC do Quinquênio”, que prevê bônus ao Judiciário a cada cinco anos de trabalho, uma medida que pode gerar impacto de até R$ 42 bilhões sobre as despesas remuneratórias de servidores públicos.

De acordo com pesquisa Genial/Quaest, realizada entre 2 e 5 de maio com 2.045 brasileiros, 76% dos entrevistados são contra a proposta que tramita no Senado, enquanto 13% apoiam e 11% não souberam responder. É curioso notar que entre aqueles que ganham até dois salários mínimos – a parcela mais pobre da população –, 17% sejam a favor, enquanto apenas 9% dos que ganham mais de cinco salários mínimos – os de melhor poder aquisitivo, portanto – a validem. Aqueles com renda entre dois e cinco salários mínimos registraram 12% de apoio à proposta.

Que características explicariam os brasileiros mais pobres demonstrando maior apoio à PEC do que os mais ricos? Talvez eles não saibam que a Justiça do Brasil é a mais cara do mundo! A “descoberta”, feita pelo Tesouro Nacional, comparou os gastos com o Judiciário em 53 países. Nenhum outro país tem despesas maiores que o nosso. Do dinheiro destinado ao Judiciário nacional, 84% vão para o pagamento de salários e aposentadorias – o restante cobre todas as demais despesas.

Anualmente, o país gasta cerca de 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB) com o Judiciário, o equivalente a cerca de R$ 160 bilhões, mais que o triplo dos países emergentes, onde a média fica em torno de 0,5% do PIB. A discrepância é ainda maior na comparação com as economias desenvolvidas, como EUA e Alemanha, que gastam 0,3%. Nessa conta estão todos os tribunais estaduais, regionais, o Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal, entre outras instâncias.

E como no Brasil quase tudo parece estar fora da realidade – longe do alcance dos sentidos e da percepção da maioria dos contribuintes –, o gasto com o Judiciário supera a soma de todas as despesas com o aparato policial, bombeiros e sistema carcerário dos governos federal, estaduais e municipais. Em resumo, o país gasta mais com quem julga do que com o total destinado aos responsáveis pelo policiamento, investigação, prisão e combate a incêndios.

Ao aprovar a volta do quinquênio para uma casta já privilegiada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, que deveria zelar pela higidez constitucional, vira as costas para o País e despreza as carências de milhões de pessoas privadas de uma vida digna, em uma nação onde metade da população ainda não tem acesso a esgoto sanitário (em pleno século 21) e onde quase metade das crianças vive em situação de pobreza, condenadas a um futuro pouco promissor.

Tudo isso ocorre em meio a um cenário econômico que exige prudência fiscal e priorização de investimentos visando o crescimento econômico sustentável e a redução das desigualdades sociais, uma chaga histórica. O debate sobre a “PEC do Quinquênio” deveria ser pautado pela necessidade de ações que assegurem uma gestão mais equilibrada e justa dos recursos públicos, evitando a perpetuação de privilégios para poucos em detrimento da maioria da população. Mas no Brasil, infelizmente, a imagem que se tem da Justiça é aquela eternizada por Jens Galschiøt.

* João Augusto Botto Nascimento
[*] Advogado, membro da Anacrim/SE e secretário-geral do Fórum Brasileiro de Direitos Humanos.