OS MENINOS PADRES E SEU DISCÍPULO

Por: Paulo Fernando Morais

Publicado em 14/04/2018 as 20:23

Padre Tenório, da Ordem dos Meninos Padres, ensinou o vaqueiro a assinar o nome: Derme dos Santos. Este herói de pernas arqueadas e beiços em carne viva, fritados no fogaréu da caatinga do sertão do Seridó, foi para São Paulo ao encontro do seu destino.

A confraria religiosa espalhada pelos sertões nordestinos vinha doutrinando Derme com teologias heterodoxas, mas o vaqueiro resistia ao proselitismo dos infantes sacerdotes. Foi então que padre Tenório, o prior, homem de faro atilado, suspendeu a catequese e limitou-se a ensinar-lhe escrever o nome. Encontrou no vaqueiro luzes doutrinárias superiores à Summa Teologica, de Tomás de Aquino. O foco delas eram a terra e a promessa de chuva.

O peão Derme usava um chapéu de couro com testeira estilizada. No centro, uma estrela, ao lado dela espelhos de bolso, dos quais desciam cordões de couro. 

Padre Tenório tinha apenas três anos de idade, usava batina com botões. Numa precisão era mais fácil desabotoá-la. Ambos moravam num povoado fantasma, cujo nome foi derretido pelo calor de cem anos antes, quando foi enrolado na cauda de um cometa, e sumiu no rastro de uma estrela cadente, uma montanha inóspita morta há bilhões de anos, cujo espectro de luz fria vagueava pelo universo. Tempos depois do acontecimento pavoroso, o lugarejo retornou do rescaldo e foi reconstruído por homens malformados nascidos das próprias cinzas e das pedras calcinadas. As casas foram erguidas cobertas de fuligem e cinza densas, através das quais os raios solares penetravam frouxamente e desapareciam antes de chegar ao solo.

Derme dos Santos aceitava com respeitosa resignação o ensinamento do religioso, porque das suas cogitações brotavam sinais de que assinar nome seria uma perda de tempo na vida improvável que o esperava. Mesmo assim, com os olhos vermelhos, sob a luz de um candeeiro de chama hesitante, aprendeu a lição e deixou os meninos padres muito satisfeitos com aquele a quem chamavam “nossa criatura”. 

Derme dos Santos foi embora e engalfinhou-se com o mundo e dominou-o com uma gravata marcial. Da luta com a vida uma lição que era o oposto do que lhe ensinara a Ordem religiosa: aos famintos, restos de comida; aos porcos, joias.

Quando, muito além daqueles dias o céu apareceu com dois sóis de geometria desigual, Derme voltou ao sertão, ao povoado cujo nome o cometa entregou à luz glacial da estrela morta, e foi recebido por padre Tenório, já em vias de desaparecer, pois estava menor do que a cabeça de um Caboclinho. – Voltou? Cadê o chapéu enfeitado de estrela e espelhos com rabos de couro? – Padre Tenório, como disse naquela ocasião, assinar o nome não serviu pra nada. Arrumei a vida no gogó. Aqui está o velho chapéu, com a estrela sem pontas, e os espelhos cegos. Não serve pra nada. Com a licença do velho amigo em extinção, vou rumar no lixo.




Paulo Fernando Morais

Paulo Fernando Morais é Jornalista e Escritor