As quatro notas

Publicado em 17/06/2024 as 20:49

Sol, sol, sol, mi bemol. Quatro notas! Apenas quatro notas! Elas se tornam o motivo, com novas notas, mas com a mesma distância escalar; indo e vindo com harmonias ampliadas, naipes orquestrais variados, essa é a essência da Quinta Sinfonia em dó menor, opus 67, de Ludwig van Beethoven, música que ultrapassou séculos, símbolo da luta contra a essência trágica do ser humano. Que paradoxo! Quatro notas essenciais que denunciam a essência e apontam para a historicidade humana. Beethoven com a sua musica dizia, o que o filósofo José Ortega y Gasset, posteriormente declarou: “O ser humano não tem essência; tem história”.

Quatros notas! Notas que formariam um grito de liberdade, assim como, posteriormente, foi o grito primal dos criadores do rock. Uma busca constante do ser humano em busca da liberdade, uma tentativa permanente de vitória contra um destino que o ser humano encontrou como um ser lançado no mundo, um mundo que não pediu para vir, mas que pode libertar-se das amarras, dos valores cerceadores da liberdade. Um grito tão forte que motivou a BBC de Londres transmitir em código morse para a Europa ocupada pelas forças nazistas, as quatro notas (três curtas e uma longa) que significa a letra V, a primeira letra da palavra Vitória.

Quatro notas! Oriundas de uma limitada escala de sete tons, composta originalmente por um piano de 88 notas, mas, como todas as limitações, elas são um convite para a transcendência, para a ampliação ilimitada para a criatividade. Beethoven não era um inventor de melodias ou um improvisador maravilhoso como era Mozart. Beethoven era uma revoada de emoções, notas após notas, que interrogam a condição humana, vê espaços projetivos para a liberdade. A Quinta Sinfonia arrebata, lançando-nos no mundo pleno de contradições, ora uma noite do mundo, ora a luz luminosas dos sonhos. Apolo e Dioníso de mãos ásperas dadas. Essa sinfonia é a resposta à dor, uma evocação à luta, à possibilidade de libertação.

Quando criança, na sua fase heterodoxa - no linguajar de Piaget -, foi submetido a uma férrea disciplina musical pelo seu pai, retirando-lhe a magia da infância. Deixou fortes marcas, entretanto, uma pergunta? Ludwig seria Beethoven sem vivenciar essas limitações? Sem defender a forma severa e quase desumana que seu pai o submeteu, entendo que em certas fases da infância é necessário vivenciar as limitações, as disciplinas, para que na fase da autonomia, a pessoa possa criar caminhos criativos para ultrapassar as velhas limitações, em uma dialética de libertação. Na sua maturidade, Beethoven trilhos caminhos ásperos das contradições dialéticas, e no seus últimos quartetos, mas de perto no maravilhoso quarteto de cordas nº 14, onde expandiu o conceito de tonalidade, obra que não foi muito compreendida pela sociedade culta da época, mas ela visava o futuro, uma revolução musical que outros futuros compositores ampliariam.

Beethoven tinha conhecimento da sua dor, mas era inconformado. Nunca aceitou a servidão de uma alma resignada; protestou contra as ditaduras dos eleitos divinos e era um cultuador dos voos libertários. Em um dia de tempestade, erguendo a mão fechada para o alto, Beethoven fez seu ultimo protesto como um Prometeu, contra os deuses e os homens que o acorrentaram.

Pensando bem, tudo é muito simples, e a vida autêntica prima pela simplicidade. Somos apenas quatro notas empáticas que ansiam pela solidariedade, e quando compreendidas, refletidas e manejadas com criatividade, abre-se um infinito espaço para a beleza e a transcendência.

*Ivan Bezerra de Sant’ Anna, advogado