Documentário mostra que cultura armamentista brasileira foi totalmente importada dos EUA

Publicado em 23/02/2023 as 08:32

“Armamentistas querem importar ao Brasil o amor que setores da população dos EUA têm pelas armas”, é a frase que abre o documentário “Armamentistas do Brasil são inspirados pela NRA (National Rifle Association)”, dirigido pela jornalista Leah Varjacques e lançado neste mês pela revista VICE no YouTube.

O filme começa com imagens de bolsonaristas destruindo Brasília em 8 de janeiro, com declarações dos golpistas de que a ação seria em prol da permanência do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder, mesmo tendo perdido as eleições - consideradas fraudulentas por eles. A 'insubordinação civil' traz o mote para a revista dos EUA: as semelhantes entre o terror bolsonarista de 8 de janeiro com a Invasão do Capitólio de Washington, em 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores de Donald Trump tentaram mantê-lo na Casa Branca à força. Além disso, é importante lembrar que tanto Jair como The Donald são investigados como mentores dos atos de seus seguidores.

Mas voltando ao filme, logo após a apresentação do mote e da tese central – de que o armamentismo brasileiro é totalmente importado da NRA, a principal organização lobbista pró-armas dos EUA – a equipe entrevista Mardqueu Silvio França Filho, famoso influenciador digital armamentista conhecido como ‘Samurai Caçador’. Ele dá algumas pistas sobre como os armamentistas veem os EUA dentro do âmbito da questão.

“Nós brasileiros temos nos EUA uma referência de liberdade. Sou um cara, como qualquer outro brasileiro, que se filiou ao Proarmas e viu ali uma maneira de se organizar para buscar direitos. Ter a possibilidade de eleger representantes armamentistas no poder faz com que a gente possa, lá na frente, garantir através de leis uma segurança jurídica que possa ser passada para as gerações futuras,” explicou.

O Samurai Caçador foi entrevistado por uma jornalista da equipe de Varjacques em Severinia, no interior de São Paulo, cidade localizada entre São José do Rio Preto e Bebedouro. Curiosamente muito próxima de Olímpia onde o jornalista José Antônio Arantes, editor de um pequeno jornal local, sofreu 3 atentados – em um deles despertando de madrugada com sua casa em chamas – após ter feito críticas ao então governo de Jair Bolsonaro e seus apoiadores. Arantes acreditava à época que sua denúncia à comunidade de que bolsonaristas faziam um chamamento para uma “insubordinação civil” na região teria motivado os atentados. E bem, todos sabemos, que uma suposta insubordinação civil não tem como ser pensada e realizada sem armas.

No entanto, como no Brasil não havia o direito ao porte de armas por civis previsto na constituição, Bolsonaro deu um ‘jeitinho’ logo que assumiu em 2019 e, com uma série de decretos, flexibilizou as regras de porte de armas. Hoje em dia, basta ter dinheiro suficiente para conseguir adquirir os mais variados armamentos no país. E um pouco de paciência, é verdade, pois o trâmite exige alguma burocracia, como inscrever-se em um clube de tiro, tomar aulas de manuseio de armas e, enfim, tirar uma licença de CAC (caçador, atirador esportivo ou colecionador).

Com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em primeiro de janeiro deste ano, novos decretos foram editados pelo novo presidente a fim de remediar o “liberou geral” do antecessor. Entre as medidas, as armas adquiridas após 2019 deveriam ser recadastradas na Polícia Federal, e não no Exército como outrora. Mas cerca de 90% dos mais de 700 mil CACs registrados ignorou o nova norma. Ao mesmo tempo, políticos eleitos no ano passado para o Congresso Nacional, com apoio do Proarmas – a NRA brasileira, como veremos a seguir – tentam um contragolpe aos decretos de Lula, propondo uma série de medidas que mantêm as normas para porte civil.

Isto casa com o principal objetivo do Proarmas e dos armamentistas brasileiros, como o próprio Samurai Caçador soube sintetizar: “Não vejo um futuro sombrio para o armamentismo brasileiro [com a eleição de Lula]. Acredito que as armas vão permanecer na sociedade”.

Shot Fair Brazil - Joinville, Santa Catarina, agosto de 2022
Uma das maiores convenções armamentistas da América Latina, a Shot Fair Brasil, que ocorre anualmente no mês de agosto em Joinville, Santa Catarina, recebeu a equipe da VICE no ano passado. Lá, os jornalistas dos EUA encontraram uma vez mais com o Samurai Caçador.

“Isso aqui é projeto para 10, 20 anos”, o influenciador comemorou a realização do evento. “Lutamos para que independente do governo, seja de esquerda ou de direita, a pauta armamentista permaneça”, concluiu.

Na contagem geral, somando armas registradas por civis, forças de segurança e estimativas de armas ilegais, Brasil tem aproximadamente 4 milhões de armas contra 393 milhões dos EUA. Com as políticas do último período é possível notar – e o documentário chama atenção para isso – que o potencial desse mercado é enorme no país.

Na feira, que surpreendeu pelo tamanho os jornalistas estrangeiros, foi entrevistado George Washington de Oliveira Sousa, o homem preso acusado de planejar o atentado a bomba no aeroporto de Brasília, na véspera de natal. Ele é apresentado no documentário como um colecionador de armas e alguém que vai estar entre os que “dirigem o lucrativo negócio de armas no Brasil”.

“Nos últimos anos ele gastou 30 mil dólares construindo um verdadeiro arsenal”, diz a jornalista no off do documentário. Na cena seguinte, ela entrevista George Washington meses antes do atentado em Brasília e pergunta quantas armas ele tem. Ele responde enquanto manuseia rifles diante da profissional.

“Tenho 26 armas e até pouco tempo atrás tinha apenas 3”, contou George Washington, que revelou ter começado a comprar o arsenal em outubro de 2021. Ou seja, entre outubro de 2021 e agosto de 2022, em cerca de dez meses, ele adquiriu pelo menos 26 armas.

“Você precisa de 26 armas?”, perguntou a jornalista. “Não, mas é uma paixão”, respondeu. Paixão essa que a essa altura deve estar em algum depósito da Polícia Federal.

George Washington ainda faz questão de explicar que antes de Bolsonaro tornar-se presidente jamais poderia ter comprado suas armas. “Nosso presidente hoje é um armamentista, e eu acho que isso traz mais segurança para o nosso país pois os bandidos hoje sabem que o cidadão de bem está armado”, concluiu. A fala final do futuro terrorista trouxe o “efeito sounds familiar” (parece familiar) aos jornalistas; em referência à frase dita por Biden a Lula quando o petista contava as peripécias golpistas de Bolsonaro ao mandatário norte-americano durante recente visita a Washington - Biden respondia que "parece familiar", em referência a Trump.

“Se esse argumento parece familiar [para o telespectador dos EUA], é porque ele vem diretamente das cartilhas da NRA, tendo sido repetido diversas vezes nas suas propagandas”, explica a jornalista para, em seguida, exibir algumas imagens de pessoas ligadas à NRA fazendo discursos na mesma linha do de George Washington.

Proarmas, a NRA do Brasil
Outro dado interessante sobre o qual o documentário chama a atenção é de que até 2005 o movimento armamentista era praticamente inexistente no Brasil. À época, no primeiro mandato de Lula, o governo federal convocou os eleitores para votar em um plebiscito que buscava proibir a venda de armas no país e desarmar a população. A medida tinha amplo apoio quando foi lançada.

De acordo com depoimentos coletados à época pela imprensa nacional e reproduzidos no documentário, pessoas comuns apoiavam o desarmamento por duas razões. Em primeiro lugar por claramente dar condições para conter a violência urbana e, em segundo lugar, para que a sociedade não vivesse um caos social no qual todos estariam armados e resolvendo seus problemas à bala, como em um filme de bangue-bangue. Ou melhor, como no triste caso registrado em Sinop (MT) na última terça-feira (21), em que dois bolsonaristas se revoltaram com uma partida perdida de sinuca e realizaram uma chacina no bar onde estavam. O matador portava uma escopeta e após executar 7 vítimas recolheu o dinheiro da aposta perdida no jogo antes de fugir do local.

“A NRA notou essa dificuldade e passou a ajudar o lobby armamentista brasileiro com estratégias para lutar contra o desarmamento [em 2005]. Entre essas estratégias, na própria campanha do plebiscito, começou a introjetar a ideia de que portar armas teria relação com a liberdade individual dos cidadãos e com o combate à violência urbana”, explica a VICE. A campanha deu resultado, inverteu as previsões, fazendo com que o “não”, defendido pelos armamentistas, vencesse com pouco menos de 60 milhões de votos (64%), contra 33 milhões do “sim” (36%).

“A ideia de que civis devem ter direito a se armar é totalmente importada no Brasil”, explicou Robert Muggah, cientista político canadense que estuda o controle de armas no Brasil. Para ele a cultura armamentista brasileira é 100% influenciada pelos armamentistas dos EUA.

“A cultura armamentista brasileira foi inventada e importada pelos defensores de armas dos EUA. A NRA veio ao Brasil apoiar as campanhas pró-armas, trazendo um discurso que ninguém nunca tinha visto no país. A razão é que a NRA entende a importância das regras internacionais, que podem afetar os seus interesses domésticos. E isso não se trata apenas de liberar armas, mas de aumentar sua influência política. A família Bolsonaro entende que esse é um grande grupo de eleitores, do qual pode se aproveitar em eleições futuras, e tem atuado de maneira bem sucedida nesse sentido”, declarou o pesquisador.

O Proarmas foi fundado em 2020, no auge temporal do 'poder bolsonarista', e é baseado na forma de organização e atuação da NRA. Em comício organizado em julho de 2022, já de olho nas eleições, Eduardo Bolsonaro apareceu como o principal orador. “Quero estar armado porque prefiro bandido debaixo da terra do que a minha esposa estuprada”, declarou no carro de som.

Quando perguntado, já em entrevista para a jornalista Leah Varjacques, se a NRA financiou as recentes campanhas eleitorais do clã, Eduardo disse que não mas que compartilham dos mesmos valores e pensamentos. “Eu que doei para a NRA anos atrás porque realmente me agrada o trabalho que eles fazem nos EUA. Mas aqui, nós ainda estamos construindo a nossa NRA”, revelou.

Ao contrário do que pensam os mais otimistas, o bolsonarismo – e em especial a sua vertente armada – não desaparecerão com o fim do governo de Jair Bolsonaro ou com sua eventual prisão. Aparentemente o objetivo da NRA de fomentar uma versão brasileira da cultura armamentista dos EUA obteve sucesso e teremos longos anos para reverter o problema por aqui.

“O Brasil já era um dos países com mais homicídios no mundo. Ao introduzir tanto armamento na sociedade, seja legal ou ilegal, foi criado um problema para o Brasil que pode durar gerações. Com ou sem Bolsonaro devemos ver o movimento armamentista continuamente aumentando sua influência política, muito além da presidência”, concluiu Muggah.

*REVISTA FÓRUM