AMOR EM SILÊNCIO

Por: Paulo Fernando Morais

Publicado em 18/12/2017 as 15:12

No cemitério de Maruim há duas sepulturas iguais e incomuns abandonadas há muitos anos. Em suas lápides constam unicamente os anos de nascimento e morte dos que ali foram deixados e uma inscrição. Na do lado direito de quem entra, as datas: 1890 – 1932; logo abaixo, a frase: “Descanse em paz quem muito amou em silêncio.”

Na do lado esquerdo, o outro túmulo: l870– 1931, e o mesmo epitáfio.

Durante algum tempo, tentei descobrir os nomes dos mortos. Uma das pessoas consultadas disse que quando nasceu os túmulos já estavam ali, e recorda o aparecimento de visitantes no Dia de Finados, para rezarem sobre eles e colocar flores em suas cantoneiras. A cada ano tais visitas foram rareando e desapareceram. Ela ouvira do pároco cônego Antídio que, no final do século XIX e na primeira década do século XX, algumas famílias do Sul fincaram os interesses comerciais na cidade-trapiche de Maruim, na época exportadora de açúcar para a Europa, e progrediram muito. Alguns dos seus integrantes foram sepultados naquela cidade. Quanto a omissão da identidade dos defuntos era um mistério. Minhas pesquisas deram em resultados pífios, e terminei cansando. Mas todas as vezes que ia àquele cemitério era atraído pelos dois segredos marmóreos, e por eles levado ao desejo de desvendá-los.

Faz algumas semanas, sem que houvesse qualquer intenção,ao folhear por curiosidade velhos jornais sergipanos encontrei um,edição de 12 de julho de 1943, com reclame de uma casa do Rio de Janeiro que construía jazigos numa rua do bairro de Ramos Ilustrado pela foto dos túmulos de Maruim. Estupefato, escrevi o endereço, não obstante a pouca esperança de que a firma ainda existisse.

Viajei ao Rio. As anotações me levaram a um prédio de arquitetura bizarra, com a frente guarnecida por um portão de ferro arqueado, com arabescos enferrujados, ausência de manutenção e corroídos pelo tempo; depois dele atravessa-se um jardim também malcuidado, infestado de ervas daninhas até a porta de entrada.Fui recebido por quem me pareceu dono ou sócio da Jazigo Perpétuo – À Prova de Ressurreições. O subtítulo me deu vontade de rir, uma inconveniente publicidade do material supostamente indestrutível com que trabalhavam.

De repente, fiquei diante de um homem de feitio remotíssimo, mumificado num terno preto completo, inclusive com colete, o rosto plúmbeo. Apresentou-se como gerente da empresa. Ao entrar, não vi mais ninguém. Era possível que a fábrica ficasse nos fundos, e estávamos num espaço que podia ser descrito como parlatório: uma pequena sala, com mesa no centro, sofá e cadeiras de palhinha. A sisudez do funcionário me deixou desconfortável, apressei a conversa contando-lhe o motivo de minha visita. Fleumático, pediu licença, retirou-se. Alguns minutos depois retornou com um intemporal e maçudo catálogo encadernado a mão. “Vossa Senhoria fique à vontade. O que procura sem dúvida encontrará”, e saiu.

Algumas páginas depois, chamei-o quase gritando: “Ei-los aqui, senhor, encontrei!”. Depois de folhear algumas páginas que contavam a história da criação da firma, no rodapé de uma delas estava a foto dos dois túmulos .O suposto negociante chegou tão rápido que parecia não ter-se ausentado. “Deus seja louvado! Vossa Senhoria, por favor, me acompanhe”. Levou-me até outra sala onde havia uma única poltrona. “ Disponha do tempo que achar necessário, pois lerá a mais tocante história de amor, desde que Julieta, debruçada sobre o balcão da sua casa, aguardava a chegada de Romeu”. 

Recomecei a leitura do catálogo:

“.......Em 9 de outubro de 1941, recebemos da Excelentíssima Senhora Dona Judith Sachs a encomenda de dois jazigos, nos quais constariam somente datas e um epitáfio, e seriam transportados e edificados no cemitério da cidade de Maruim, no Estado de Sergipe. Exigiu que o material fosse o melhor do nosso estoque, e insistiu para reembolsar-nos imediatamente. Não sendo do interesse da Casa o conhecimento de pormenores da vida dos nossos clientes, limitando-nos ao que diz respeito às transações comerciais, em face do extraordinário pedido, abrimos uma exceção: por tratar-se de respeitabilíssima madame, membro e digna representante de família de moral ilibada, bem como dos familiares do Excelentíssimo Senhor Giacomo Marsiglia, todos eles nossos honrados amigos e clientes desde que nos instalamos, acatamos um opúsculo dividido em duas partes: a primeira relata um episódio segredo de família do qual tomamos conhecimento através desta peça e conosco assim permanecerá, até a morte dos que estiveram nele envolvidos e seus descendentes diretos; na segunda, resultantes da primeira, estão as instruções que devemos cumprir, com o rigor e discrição habituais em nossas atitudes. Pela firma Jazigo Perpétuo – À Prova de Ressurreições, Anízio Josefo Medrado, Presidente, e Eunápio Josefo Medrado, Vice-Presidente.”

O DOCUMENTO

“Sou filha de Otto e Marlene Sachs, descendentes de alemães. No início do século XX morávamos na cidade de Maruim, no Estado de Sergipe. Meu pai era exportador de açúcar. Pouco mais de um ano depois, chegaram ao município o casal Giacomo e Júlia Marsiglia, descendentes de italianos. Giacomo tinha a mesma atividade comercial do meu pai. A crise na indústria açucareira ainda não começara e eles associaram-se e tiveram sucesso. O amor entre meu pai e Júlia Marsiglia, ele anos mais velho do que ela, surgiu inopinadamente, como algo oculto que aguardava o momento de revelar-se. Quando aconteceu, teve início um drama que os fez penar durante quatro anos, incapazes de tornar concreto o que era visível no íntimo dos dois.

A sociedade entre Otto e Giacomo aproximou mais as duas famílias e intensificou a dor de Otto e Júlia. Dois anos depois ela deu à luz um menino que recebeu o nome do meu pai, “uma homenagem”, segundo Giacomo, “a um amigo irmão”. Infelizmente, o recém-nascido faleceu com menos de um ano.

Subjugados pela consciência e por razões morais, amavam-se pelo olhar, vigiavam as próprias palavras, jamais se reuniam sem testemunhas, e mesmo quando não as tinham, por acordo tácito procuravam-nas, contanto que não ficassem a sós, quando o que mais queriam era sumirem-se um no outro. Com os respectivos consortes dissimulavam elevando o nível de compreensão e carinho recíprocos. 

O receio de que a atração entre eles chegasse ao conhecimento de quem quer que fosse robustecia-lhes a arte do fingimento, mas desvigorava-lhes o organismo. Viviam vidas duplas, penosa autofagia de emoções que os depauperavam a cada dia.

Com a crise do comércio do açúcar houve redução das exportações, perdeu-se muito dinheiro, a sociedade foi desfeita, e fomos viver no Rio de Janeiro. Giacomo, incapaz de suportar a ronda da falência, morreu de repente. Morávamos no mesmo edifício, em Botafogo. Meu pai e Júlia Marsiglia, minados em seu interior pela tortura do amor execrado, adoeceram.Fazia quatro anos que se autoimolavam numa paixão platônica. Dois dias antes de morrer(minha mãe faleceu dois meses depois), meu pai me contou tudo, compelido pelo remorso. Pediu que trasladasse seus restos mortais e os de Júlia(falecida em janeiro de 1932) para o cemitério de Maruim.

Assinara com ela um documento que está comigo, certamente no primeiro e único encontro que tiveram desassistidos. O traslado seria feito na época que eu julgasse oportuna para não causar embaraços de qualquer espécie, e que os túmulos ficassem distantes um do outro, nem os nomes deles inscritos nas lápides , apenas as datas de nascimento e morte, e a frase: “Descanse em paz quem muito amou em silêncio”. Acreditava, diante do meu espanto, que, se a vida negou, a morte não teria o direito de juntá-los. Deus reservara aos dois a união dos espíritos.” Assinado por Judith Sachs, filha de Otto e Marlene Sachs. Rio de Janeiro, 12 de março de 1932.

Antes de me levantar, fiquei imóvel alguns instantes refletindo sobre o que acabara de ler. Abri a porta, para devolver o documento ao homem esquisito, que logo apareceu sem que eu o chamasse. Disse-lhe, emocionado:

- História impressionante. Muito obrigado, Sr...

O comerciante curvou a espinha, solene:

- Otto Marsiglia.

 
 
 



Paulo Fernando Morais

Paulo Fernando Morais é Jornalista e Escritor