Euclides da Cunha uniu ciência à arte e denunciou diversas violências

Publicado em 20/01/2021 as 00:04

A escolha das palavras certas para descrever o ambiente e revelar tragédias. Descortinar violências, "Brasis" diferentes e até a própria consciência. Nas mesmas frases e páginas, misturas de ciências e arte literária. O espírito combativo, curioso e metódico de Euclides da Cunha é anunciado desde as primeiras páginas de Os Sertões (1902), obra monumental da literatura e do jornalismo brasileiro (disponível para leitura em domínio público), segundo explicam estudiosos do consagrado escritor, que nasceu em 20 de janeiro de 1866 (há 155 anos).

Mesmo depois de tanto tempo - a primeira edição do livro saiu em 1902 -, os especialistas ouvidos pela Agência Brasil argumentam que a profundidade do trabalho do brasileiro, marcado pelo olhar científico e ao mesmo tempo artístico, explica a atualidade dos seus escritos e a necessidade de ser revisitado no século 21.

O autor, ex-oficial do Exército e engenheiro, escrevia para o jornal O Estado de S. Paulo, e foi para a Bahia reportar o que acontecia na Guerra de Canudos (que durou entre novembro de 1896 a outubro de 1897). Euclides esteve na região entre 10 de setembro e 3 de outubro (23 dias) e publicou suas impressões no jornal como Diário de Uma Expedição, a partir das 22 cartas e 55 telegramas escritos. Os trabalhos seriam a inspiração para o livro que seria publicado cinco anos depois, dividido em três partes: A Terra, O Homem e A Luta.

Euclides se surpreendeu bastante com o que viu e vivenciou. “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”, escreveu ele logo na nota preliminar. Segundo pesquisadores, diante do que flagrou, ao invés de compilar relatos e se ater a uma versão do governo central, Euclides mergulhou nas histórias dos sertanejos (sob a liderança polêmica do religioso Antônio Conselheiro), nos contextos amplos do cenários e do ambiente da caatinga e buscou as causas do acontecimento. “Ele sempre acreditou no consórcio entre a ciência e a arte”, afirma o professor de literatura brasileira e hispânica na Universidade da Califórnia, Leopoldo Bernucci, em entrevista por videoconferência. “Euclides tinha uma mente extremamente curiosa em um período marcado pelo culto à ciência”.

Obra de arte
Bernucci publicou em 2001 versão comentada de Os Sertões e, em 2021, chegará à sexta reimpressão, sempre com novas revisões para facilitar o entendimento de um livro que mexe com a cabeça do leitor. “A obra de Euclides é um conjunto extraordinário de conhecimentos. Trata-se de uma leitura difícil, com saberes técnicos e científicos. Mas ele se propôs a tratar do fenômeno de Canudos. A partir do momento que se lê essa grande obra, pode-se verificar que tudo ali está organizado e articulado”.

O livro é considerado uma obra de arte desde a sua publicação. Em 1903, o crítico Araripe Júnior escreveu que não era possível criticar o trabalho. “A emoção por ele produzida neutralizou a função da crítica. E, de fato, ponderando depois calmamente o valor da obra, pareceu-me chegar à conclusão de que Os Sertões são um livro admirável, que encontrará muito poucos, escritos no Brasil, que o emparelhem”. José Veríssimo destacou que o livro revelava “um homem de ciências”, “um homem de pensamento”, e um “homem de sentimento”. A obra lhe valeu a indicação à Academia Brasileira de Letras, em 1903.

Além de dispôr a história da revolta e do papel de Antônio Conselheiro, Euclides utilizou um grupo de saberes que incluiu botânica, geologia, sociologia, antropologia, história das religiões e conhecimentos amplos sobre a vida e história militar.

Aliás, a formação de Euclides em escolas militares tem influência decisiva, segundo pesquisadores, em seu desenvolvimento intelectual. “As escolas e a carreira militar são decisivas na vida dele. O Exército estava na vanguarda do processo histórico daquele período. Claro que os professores e as referências que ele teve influenciam na obra, que é alta literatura”, afirma a professora Walnice Galvão. Ela pesquisa vida e obra de Euclides da Cunha há mais de 50 anos. A intelectual, docente emérita da Universidade de São Paulo (USP), publicou 12 livros sobre o autor. “Além da formação, outro fato transformador na vida dele é a cobertura em Canudos”, salientou.

*EBC