Mais privilégios para uma Justiça já obesa
Se, como propôs René Descartes, os sentidos nos enganam, podemos confiar nas informações que recebemos através deles? Em situações em que dificilmente podemos ser enganados, o aforismo “Uma imagem vale mais que mil palavras”, atribuída ao filósofo chinês Confúcio, nos ajuda a entender o poder da comunicação visual.
E nada ilustra com mais precisão a Justiça no Brasil – inchada, lenta, viciada e repleta de privilégios – do que uma escultura de Jens Galschiøt instalada na praça da prefeitura de Fredericia, no sul da Dinamarca. A obra retrata uma mulher obesa, mórbida, de olhos cerrados, segurando uma balança menor que seus seios volumosos, sendo carregada sobre os ombros de uma pessoa miserável, magra, de olhos fundos e de estatura menor que o cajado que sustenta a pesada senhora.
Tudo naquela imagem icônica é maior que o cidadão comum, exceto a balança, é claro. O imenso cajado, simbolizando o Estado, está à vista do ser faminto por justiça, mas parece distante dele. Talvez essa seja uma boa razão para oito em cada dez brasileiros serem contra a “PEC do Quinquênio”, que prevê bônus ao Judiciário a cada cinco anos de trabalho, uma medida que pode gerar impacto de até R$ 42 bilhões sobre as despesas remuneratórias de servidores públicos.
De acordo com pesquisa Genial/Quaest, realizada entre 2 e 5 de maio com 2.045 brasileiros, 76% dos entrevistados são contra a proposta que tramita no Senado, enquanto 13% apoiam e 11% não souberam responder. É curioso notar que entre aqueles que ganham até dois salários mínimos – a parcela mais pobre da população –, 17% sejam a favor, enquanto apenas 9% dos que ganham mais de cinco salários mínimos – os de melhor poder aquisitivo, portanto – a validem. Aqueles com renda entre dois e cinco salários mínimos registraram 12% de apoio à proposta.
Que características explicariam os brasileiros mais pobres demonstrando maior apoio à PEC do que os mais ricos? Talvez eles não saibam que a Justiça do Brasil é a mais cara do mundo! A “descoberta”, feita pelo Tesouro Nacional, comparou os gastos com o Judiciário em 53 países. Nenhum outro país tem despesas maiores que o nosso. Do dinheiro destinado ao Judiciário nacional, 84% vão para o pagamento de salários e aposentadorias – o restante cobre todas as demais despesas.
Anualmente, o país gasta cerca de 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB) com o Judiciário, o equivalente a cerca de R$ 160 bilhões, mais que o triplo dos países emergentes, onde a média fica em torno de 0,5% do PIB. A discrepância é ainda maior na comparação com as economias desenvolvidas, como EUA e Alemanha, que gastam 0,3%. Nessa conta estão todos os tribunais estaduais, regionais, o Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal, entre outras instâncias.
E como no Brasil quase tudo parece estar fora da realidade – longe do alcance dos sentidos e da percepção da maioria dos contribuintes –, o gasto com o Judiciário supera a soma de todas as despesas com o aparato policial, bombeiros e sistema carcerário dos governos federal, estaduais e municipais. Em resumo, o país gasta mais com quem julga do que com o total destinado aos responsáveis pelo policiamento, investigação, prisão e combate a incêndios.
Ao aprovar a volta do quinquênio para uma casta já privilegiada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, que deveria zelar pela higidez constitucional, vira as costas para o País e despreza as carências de milhões de pessoas privadas de uma vida digna, em uma nação onde metade da população ainda não tem acesso a esgoto sanitário (em pleno século 21) e onde quase metade das crianças vive em situação de pobreza, condenadas a um futuro pouco promissor.
Tudo isso ocorre em meio a um cenário econômico que exige prudência fiscal e priorização de investimentos visando o crescimento econômico sustentável e a redução das desigualdades sociais, uma chaga histórica. O debate sobre a “PEC do Quinquênio” deveria ser pautado pela necessidade de ações que assegurem uma gestão mais equilibrada e justa dos recursos públicos, evitando a perpetuação de privilégios para poucos em detrimento da maioria da população. Mas no Brasil, infelizmente, a imagem que se tem da Justiça é aquela eternizada por Jens Galschiøt.
* João Augusto Botto Nascimento
[*] Advogado, membro da Anacrim/SE e secretário-geral do Fórum Brasileiro de Direitos Humanos.