AVENTURA COM MINHA CADELA SERENA

Por: Paulo Fernando Morais

Publicado em 21/02/2018 as 18:11

Serena latia, puxando-me em direção do homem, um senhor feito às pressas, e jogado no mundo sem acabamento. Aproximo-me dele, olha-me com desgosto, segue, está visto que não quer contato com seres de minha espécie. Ele, o inclinado, contorna a borda da cisterna de um jardim enegrecido pela solidão, e salta para dentro dela, semelhante aos que voam em busca da liberdade subterrânea.

Eu e Serena avistamos lá no fundo do reservatório os círculos concêntricos formados pela água com o impacto do corpo rebelde. Enquanto a geometria se desmancha e as águas ficam mansas, aparece-nos sobre elas o homem estendido numa canoa, proa e popa semelhantes ao bigode de Salvador Dali. Não podemos fazer nada, Serena, digo à cadela amada. A canoa deve ter o mapa do caminho das águas daquele homem degenerado.

Pois bem, antes de retirarmo-nos, a imagem da Lua Nova desprende seu espectro de luz morna, rompe uma nuvem cumulus ameaçadora quanto um cogumelo atômico e mete-se cisterna abaixo, jogando-nos numa manjedoura de pombos e suas comportas excrementais permanentemente abertas. Levantamo-nos e corremos para a fonte, na expectativa de que assistiríamos à reconstrução de um mundo novo, dessa feita erigido com nutrientes de valor sagrado, os sargaços de um poço imundo, porquanto levávamos em conta o inusitado das ocorrências que testemunhamos, e, em razão da nossa ignorância sobre o Universo, imaginar que o charco seria o contraponto ideal para a falsa abundância do paraíso, onde tudo nasceu e frutificou para morrer peco. 

O que vimos, no entanto, foi assustador: a sobreposição da Lua na canoa, ajustadas em suas extremidades pontiagudas, a abóbada de uma e a concha da outra formando a imagem de um olho gigante e torturador, que espelhava uma crueldade mais intensa do que o do Grande Irmão. 

Serena e eu entreolhamo-nos com os olhos cintilando fagulhas de melancolia e de desespero.

 
 
 



Paulo Fernando Morais

Paulo Fernando Morais é Jornalista e Escritor