A VELHICE DO CORONEL

Por: Paulo Fernando Morais

Publicado em 06/02/2018 as 20:58

O vento regia o repertório do seresteiro. O som do violão chegava pianíssimo, aos poucos ia aumentando para em seguida fugir e de novo crescer. As alternâncias de tonalidade suscitavam a ideia de que o alagoano Zé Ribamar estava solto, tocava caminhando, impregnando o ar da usina Pombinha de langorosas melodias. Desde que ficou viúvo, Coronel Luís Afonso e o empregado André Feitor sentavam-se à noite na varanda do pavimento superior do sobrado, para repassar as atividades do dia.

A contratação de Zé Ribamar para o escritório da usina veio temperar a conversa noturna com a magia do seu violão. Na noite ora relatada, o diálogo foi interrompido logo nos primeiros acordes. O violonista executava com estilo próprio pungentes canções de um tempo remoto. – Quem está tocando hoje é o mesmo camarada, André? – Está diferente, mas é ele, Coronel. As cantigas são de arrepiar, talvez porque amanhã vai ser o julgamento. – Amanhã?! – espantou-se o usineiro. - Tão em cima e ele toca desse jeito! E eu daqui a me distrair, cercado de lembranças gostosas e ao mesmo tempo vem essa música afiada para retalhar este velho coração. Ele é o diabo hoje, André, não antes. Você me entendeu?!-- André puxou um canto da boca e ficou calado.

Coronel Luís Afonso olhava a lua, a cabeça acomodada numa pequena almofada presa no alto da cadeira de balanço. As imagens dos prestigiados bailes das casas grandes chegavam-lhe em ondas de névoa; os olhos embaçavam. Com receio de que o feitor percebesse, desanuviou-os com o dorso da mão, e reclamou das noites indormidas.

Foram surgindo das sombras da memória as mulheres que o enlaçaram em paixões repentinas e breves, lances fugazes mas indeléveis dos seus tempos de sonhos. A detenção do alagoano na Escola, como era conhecido um anexo do galpão onde ficavam empilhados os sacos de açúcar, era o local para confinar os que transgredissem o código disciplinar da usina elaborado pelo próprio Coronel, até que fossem julgados por ele. Os sons do instrumento escapavam pelas fendas do prédio macabro.

Os saraus melancólicos, principalmente o daquela noite, tinham um significado maior para o dono da Pombinha. Iam além de um seresteiro virtuose e seu violão. Com Ribamar e sua arte o usineiro havia encerrado o ciclo de suas peregrinações noturnas, a urgência das paixões compulsivas, inadiáveis. Estava velho. Daria um freio nos impulsos que podiam levá-lo ao ridículo. Olhou demoradamente a luz do para-raios colocado no alto da chaminé. Entre outras reminiscências que passaram por ele como um arrastão, uma tocou-lhe mais, a do temporal que o surpreendeu longe da casa grande, nas cercanias do engenho Limoeiro, a duas léguas da Pombinha, onde se abrigou na casa de Acidália, uma pequena produtora rural que vinha açodando dia e noite seu instinto de predador lascivo, e foi com ela que, anos mais tarde, esgotaria sua quota de concupiscência.

Semanas antes da noite em que superara seu virtuosismo, o alagoano cometera um crime grave, e não foi linchado porque os habitantes da Pombinha não eram tolos para perder o melhor da festa: o julgamento do agressor pelo Coronel Luís Afonso. Por causa de uma discussão sobre futebol, apunhalara o estribeiro Raul, que sobreviveu graças ao remendo que dr.Leitão fez em sua barriga .Costurado cresceu nele o desejo de vingança com prazo: se a sentença do Coronel Luís Afonso fosse aquém do estrago por ele sofrido, por Deus como a tornaria justa. – Como foi mesmo essa briga, André? Sabe que me dá gastura imaginar que as mãos desse homem sejam capazes de machucar? - Pra o senhor ver: uma discussão tola de futebol.

Não era a resposta que o usineiro queria ouvir. Estava decepcionado com o empregado, a quem dera a oportunidade de ser criativo, de encontrar uma saída que honrasse sua fama de justiceiro implacável. – Esse dr.Leitão é homem sabido. Tem o dom: deixou Raul inteiro!, provocou o Coronel, ouvidos espertos. André Feitor ficou acompanhando o cerco do patrão, aonde o velho queria chegar. Com desgosto, descobriu: seu ídolo começava a cair. Não esperava viver para tamanha decepção! Dava-lhe pena e raiva. 

Os ditos do Coronel Luís Afonso visavam ao que mais queria: poupar, com a ajuda do empregado, o infrator de um castigo que o levasse a abandonar a usina. Retornar às noites tediosas, depois de ter ouvido tantas vezes o som de um violão enfeitiçado, era o que ele menos queria.Mais um calo em sua caminhada final.

Somente de olhar o patrão ziguezagueando, o feitor remoía: a velhice é uma desmoralização.– Essa boca fechada é porque você quer que eu mande dar sumiço no homem, André? – Não foi o senhor mesmo quem me ensinou a castigar? Principalmente quem mexesse com um da gente? E esse derramou sangue?! – Foi. Mas aquilo era uma época de doido. O mundo roda. Chega um tempo em que o direito é o avesso.

Era dia já; o sol impunha-se apagando as luzes da noite. A música cessara. Coronel Luís Afonso convidou André Feitor para tomarem café juntos. – Se fosse naquele tempo...hesitou o usineiro. – Alagoano e violão já teriam levado a breca – emendou o empregado.– Escute se tenho ou não razão, André: rádio não presta, fala mais do que toca. Novelas, notícias...não quero mais saber disso. Tu estás vendo como a música do alagoano me deixou viciado? O caso não é fácil de resolver, é problema sério porque não fere apenas o desgraçado, vem com tudo em cima de mim; de nós dois, não acha?

O feitor, com cara emburrada, assistia com desgosto ao patrão desmoronando, o rumo perdido, a alma inquieta, vencida. O dono da usina dava alguns passos, entrava no salão de refeições; logo retornava à varanda; debruçava-se na sacada, olhava o horizonte que circundava a vastidão de suas terras. De repente, explodiu no meio da perdição: – E então, André, que silêncio matador é este?! Será que já estamos no inferno?! Me ajude, por favor, homem!




Paulo Fernando Morais

Paulo Fernando Morais é Jornalista e Escritor