OS PECADOS DE TALES DA MADRE DE DEUS

Por: Paulo Fernando Morais

Publicado em 18/01/2018 as 12:47

O toque de defuntos no sino da capela da Usina Madre de Deus fez Anísio saltar da cama, lavar o rosto, enquanto dizia: - Belinha, dessa vez, o Velho se foi. Cadê as roupas?! - A mulher: - No lugar de sempre. – Anísio abriu o armário. Tirou a camisa de cretone, a calça de mescla, o par de roló. Trajou-se: – Vou ver pai véio, antes que o demo lhe puxe a perna. 

O patrão Tales do Botto, dono da usina, estava dentro do caixão no salão da casa grande.

Anísio encostou-se na parede, rolava o chapéu na mão, a cabeça abaixada. Ajeitava-se numa perna, depois na outra, enquanto os olhos espiavam por baixo sem perder o movimento na sala, a chegada dos amigos do Coronel. Conhecia quase todos eles, mas não identificou um que o cumprimentou com intimidade.

- Velho Anísio, Deus te acompanhe nesta sua caminhada de agora em diante.
- Deus te benza a boca, senhor doutor. – respondeu, sem reconhecer o outro. - Devia ser um dos parentes do defunto, senão não o chamaria pelo nome, e ainda lhe desejar boa sorte? Estava num ambiente grave, hostil a pessoas como ele. A acolhida foi uma concessão a um empregado leal, assediado por todas as usinas.

Nesta mesma sala estivera muitas vezes reunido com o Coronel Anísio trocando confidências, armando conspirações. 
Procurou uma das janelas que se abriam para o jardim da casa. Necessitava descomprimir o tórax inflado de fumaça de velas. A convivência de Anísio com o patrão depois de tantos anos deixara-o quase sem identidade. Pensava depois do outro. Era um cão ventríloquo.

Dona Antônia Sophia ficou olhando detidamente o cadáver do marido, e dali não sairia até que daquele rosto redondo, gordo, ressurgisse a face que a fizera suspirar tantas vezes. Sua vida repleta de mortos ensinou-lhe que a decomposição do cadáver é feita por etapas, nas quais os vários semblantes de toda uma vida vão-se reconstituindo. A matéria, antes de tornar-se pó, despede-se das formas que ela abrigou. Sustentava a convicção de que não somos uma, mas várias cascas sobrepostas, que nem cebola.

No velório de sua avó, a tirânica anã Dona Luiza da Lombarda, pôde vê-la como descrita na história oral da família, em diversas fases da vida até os 99 anos, quando morreu. Seus 63 centímetros de altura haviam sido reduzidos para 40, e se vivesse mais alguns anos não passaria de um feto. – Não me metam numa caixa de sapato. Quero ser enterrada num caixão de gente – ordenava.- E assim foi feito: colocaram-na no meio de um féretro de 1,80 m., acolchoada com lençóis e cobertores, para não rolar no vazio entre tábuas.

A viúva avistou Anísio inquieto. Lá estava o homem que compartilhara com o marido pecados graves, cuja subserviência estimulara nele os instintos mais baixos, e fora responsável pelo distanciamento definitivo entre o casal. Interpretou o desassossego do vaqueiro como sinais de remorso. Sua índole generosa e fé religiosa não conseguiam desalojar a mágoa que ocupava o coração. O marido não teria partido com a alma pensa de tantos pecados, não fosse aquele demônio sonso. Enfeitiçado pela dedicação e fidelidade do empregado, o Coronel protegeu-se sob as asas dessa conduta, e os dois tornaram-se parceiros de delitos irremissíveis.

O desconforto de Anísio aumentou quando percebeu que a viúva não tirava os olhos dele. Sabendo quanto ela o detestava, procurou inutilmente o homem que o cumprimentara demonstrando afeição. 

Curvada sobre o caixão, a dona da Madre de Deus enxugava com o lenço a testa do morto.

O vaqueiro Anísio foi-se chegando. Quase em pânico com o que estava vendo, dirigiu-se à viúva: - Dona Antonia Sophia mande me matar se estou mentindo, mas este que está aí deitado parece o homem que veio me cumprimentar logo que cheguei. Reparo agora que é a cara do Coronel, mais novo. Vosmecê faça de mim o que quiser. Acha que endoidei? – Sei que não. Era ele, mesmo, aos 30 anos.

Neste momento está com 55. Anízio não gostaria de ser enterrado sem que você soubesse quanto custa ir embora deste mundo. Apenas os íntimos de coração e sangue têm o privilégio de ver o falecido descascando-se. - Recompôs-se. Falou com dureza ao empregado: - Depois da missa de sétimo, me entregue, sem falta, os nomes das viúvas que vocês fizeram. Não vou deixá-las com a mão estendida. Somente assim aliviarei a carga de pecados que Tales levou.- Dona Antonia Sophia não há viúvas – refutou Anísio. - Rosa e Acidália moram em Brejo Grande, com os maridos, Juca e Zé Miúdo. Zica tá no Rosário, amigada.

Tainha, o marido, foi pra Santos. Vanje largou Dorival e mora em Santo Amaro. O dinheiro que o Coronel me deu pra dar um sumiço nesses cabras reparti com eles, e mandei embora. Pode apurar. Aqui na Madre de Deus nunca se matou. A senhora sossegue.




Paulo Fernando Morais

Paulo Fernando Morais é Jornalista e Escritor