PASSAGEIRO DO NATAL

Por: Paulo Fernando Morais

Publicado em 26/12/2017 as 09:54

A poucos dias do Natal, numa madrugada de dezembro de l9.., meu pai me acordou e disse: “Bento, vamos apanhar sua irmã”. Na ocasião, ele já estava seriamente doente.

Morávamos no engenho Jirau, município de Carmelo, a uma légua da estação de trem da cidade. Lena vinha de Selene, no Sul do estado, passar as férias de fim de ano conosco.

Fomos a cavalo. Pouco antes da estação, vimos que ela estava tomada por uma multidão de pessoas com ar festivo, agitando bandeirolas. - O que está havendo? – perguntou meu pai a um conhecido. - Não lhe disseram, Artur? O Homem vem nesse trem. – Meu pai empertigou-se: - O Homem?! Ele?! No Jirau ninguém sabe disso! - Um semblante de alegria que me pareceu única ficou imobilizada no seu rosto. Nunca o vira demonstrar sentimentos. Fiquei preocupado e gravei na memória a imagem de um homem miúdo, seco, de emoções trancadas, com brilho incomum no rosto encovado. 

Perguntei-lhe quem era que estava chegando, abraçou-me como jamais o fizera, e explicou que o passageiro era mais poderoso e mais rico do que seu patrão, o coronel Jacintho do Jirau, nossa referência de grandeza.

Quando o trem parou, fomos empurrados até a plataforma. Minha irmã avistou-nos e acenou.

Meu pai estava ansioso não apenas para vê-la, mas para que lhe contasse sobre o Homem, se chegara a vê-Lo de perto. Ficou desapontado quando ela disse que fora surpreendida ao ver tanta gente. - Se Ele estivesse no trem, os passageiros teriam tomado conhecimento, argumentou - E quem foi esse que desceu e está sendo acompanhado por centenas de pessoas pelas ruas de Carmelo?, perguntou meu pai.

Sem resposta, tomou a decisão de deixar-nos em casa e retornar à cidade. Engoliu o comprimido das 10(nada o faria esquecer de tomar seus remédios na hora certa).- Vamos embora- disse. 

O cavalo Estrelo, sua montaria, acusou o risco de espora pela primeira vez: galopou, acompanhado pelo de Lena, que me levava na garupa. Meu coração quase arrebenta de alegria ao descobrir um pai destemido, capaz de montar que nem o vaqueiro Nuna.

Em casa Lena contou a minha mãe o que estava acontecendo em Carmelo, e a disposição de meu pai de voltar à cidade. Ela empolgou-se: -“Troque de roupa, e vá, Artur. Você nem O viu e a cara já é outra. Não deixe de falar com Ele. Este, sim, pode ajudá-lo”. Caprichava nos estímulos, mas intimamente não cria que o marido tivesse ânimo para tanto. Em outras ocasiões, mesmo antes de adoecer, ela cansara de arrumar e desarrumar malas para viagens que ele jamais faria. Um homem que alimentava projetos que se esfumavam ainda na fase de elaboração.

Enquanto se preparava no quarto, cantarolava desafinado Noite Feliz. Ouvi-lo cantar nos desconcertou. Escapuli e me atirei na cama abraçando o travesseiro, para abafar o choro. Minha mãe e Lena frearam a emoção e retomaram a conversa num tom sussurrante que me impedia de ouvi-las. Era evidente que, entre as duas, corriam assuntos graves. Ao saírem do quarto estavam com os olhos cintilando. Quis saber por que estavam chorosas. Lena explicou que meu pai estava cuidando de melhorar nossas vidas. - O Jirau é bom, a gente vai ter saudade, mas na cidade anda-se mais depressa.

Em seguida, ele apareceu de terno, embora o paletó sobrasse-lhe no corpo descarnado. Montou com esforço. Visto da calçada, era um homem estreito, desajeitado no lombo do cavalo. – Até. Logo mais estarei de volta.

A pisada de Estrelo revelava que o surpreendente cavaleiro que me enchera de orgulho na estrada que ligava o Jirau a Carmelo sumira por lá mesmo.

Retornou já de noite. O rosto abatido, mas resignado, era reflexo da viagem puxada, em se tratando de um homem com as forças minguando. Arriou-se na espreguiçadeira, minha irmã puxou-lhe as botas. Logo queríamos saber sobre o Visitante, se O vira, como era Ele. - Um Homem como a gente, simples, mas que tudo pode – respondeu serenamente. - Ele lhe disse alguma coisa, Artur? - perguntou minha mãe, ansiosa. – O que eu já sabia, mas de um jeito que me encheu de consolo e coragem. - Virou-se para mim: - Você, Bento, já é um homenzinho. Logo será o chefe da casa. Não me decepcione.

 
 
 



Paulo Fernando Morais

Paulo Fernando Morais é Jornalista e Escritor