CHEIRO DE AMOR

Por: Paulo Fernando Morais

Publicado em 05/12/2017 as 13:07

Passados quarenta anos, numa segunda-feira de manhã sem sol e de chuva fina, o ensimesmado manipulador de farmácia Júlio Madureira, antes de entrar no prédio onde trabalhava fungou o ar. Embora conservasse um repertório de gestos estudados e se sentisse limitado por profundo respeito humano, abandonou os escrúpulos e fungou o ar mais vezes chamando a atenção dos que passavam.

O cheiro de galinha ao molho pardo vindo de um restaurante vizinho trancou-lhe para sempre a entrada do prédio, afastou-o definitivamente do trabalho, e, a exemplo do biscoito e da chávena de chá de Em Busca do Tempo Perdido, “desatou nele o processo proustiano de lembrança involuntária, reconduzindo-o a décadas atrás,” ao dia em que ficou sabendo que Magali ia embora.

Entrou no restaurante, pediu um cafezinho para reorganizar a cabeça, enquanto o aroma recendido da galinha de cabidela o levava de volta às brenhas do Alecrim, um engenho do interior de Sergipe, onde começou a descobrir o mundo e dele gravou a pior impressão. O desencanto nasceu de um paredão social que se ergueu entre ele e a única razão de sua vida arrastada: a existência de Magali.

Alcançado pela intolerância e desaprovação paternas, o namoro de Júlio, único filho do Coronel Fabrício Madureira, dono do engenho Alecrim, foi proibido e a bonita e terna filha do carpinteiro Artur foi morar em Santos, onde era grande a colônia de sergipanos, por sugestão hipocritamente zelosa do Coronel , depois de uma conversa com o pai dela na qual demonstrou impensável preocupação com o futuro da moça, metendo no meio das ponderações uma razão espantosa: uma estocada em si mesmo ao comparar o que denominava “meu paraíso” a “uma sepultura para uma jovem cujos predicados merecem destino bem superior ao de moradora de senzala”. E foi além: - “Vou-lhe dar dinheiro para as passagens, porque você ou sua mulher vão ter que levá-la, e o passadio fica por minha conta até sua filha arranjar emprego.” 

O carpinteiro chegou em casa inflado de patética satisfação ao antegozar o cartaz que desfrutaria entre os moradores, quando lhes contasse o que ouvira do Coronel, um senhor de tamanha abundância de teres sofrendo perturbação do juízo por causa do futuro de Magali.

Chamou a mulher e a filha e narrou o que ouvira do patrão com entusiasmo que lhe cortava o fôlego, enquanto as duas se entreolhavam por uma névoa de lágrimas. Magali saiu correndo para o quarto, bateu a porta, e atirou-se na cama para banhar-se num choro de condenada.

O plano do Coronel para salvar a família de uma união que enxergava como vergonha inominável destruiu Júlio, acabando com o que lhe restava de ânimo, já de nascença fragilizado, e o protegeu numa redoma de indiferença que durou até aquela manhã em que a cozinha do restaurante paulista trouxe até ele um odor remoto exalado de pequenas panelas de barro com as quais Magali brincava de cozinhado com as amigas.

Reviveu a manhã do sábado em que ela foi embora sentada na boléia de um caminhão de feira. Olharam-se demoradamente naqueles instantes de despedida silenciosa e pungente. A cena, densamente recordada pelo cheiro que evolava da cozinha, carregava a mesma força do desespero que viu em seu rosto e da paixão que saltava dos olhos dela.

Sem suportar a ausência da amada, duas semanas depois Júlio abandonou o Alecrim, e foi para Santos. Na cidade paulista, depois de procurá-la sem êxito, optou pela morte como única solução para uma existência inútil.Escolheu o envenenamento; mas velhas histórias que ouviu sobre contorções, dilaceração das vísceras, vômitos de sangue e matéria decomposta dos envenenados o atemorizaram. Os nervos fracos, a natureza abúlica desestimulavam-no a dar o primeiro passo para protagonizar uma cena dramática. Era-lhe indispensável achar uma forma que não exigisse tanto dele. Pesquisaria. Empregou-se numa farmácia de manipulação medicinal.

O quinto cafezinho e o aroma cada vez mais forte da galinha de cabidela levaram-no a uma decisão: voltar a Laranjeiras, o município sergipano onde jaziam as ruínas do Alecrim. Reconstituiria os passos de Magali, desde o dia em que ela partira. Certamente teria retornado em algum tempo para rever os pais. Na provecta cidade esperava encontrar o fio da meada.

Ficou desapontado diante do que viu. O Alecrim nada mais era do que vestígios de um engenho que fora bem administrado e se transformara na extensão macabra de escombros que se confundiam com pequenos casebres de um povoado onde velhos cachimbavam nas calçadas e mulheres espectrais pitavam cigarro de palha e fuxicavam em pequenos ajuntamentos. 

Não havia ação; tudo se assentava num passado petrificado. Júlio não se reencontrava naquele chão de cinzas funestas; nem mesmo reconheceu nos restos de parede incolores e nas pedras traspassadas de ferros crestados pela ferrugem o que restou da casa onde nasceu.

Aproximou-se de um homem que lhe pareceu o mais velho de um grupo: - “Ah, sim, vosmecê é o Julinho. Se malembro? Sei, o senhor quer saber, né? A filha de Artur carpinteiro, a menina Magali. Que nem um rio seco,meu santo, veja o que sobrou do Alecrim. Entonce! Mas é que ela nunca foi pra Santos. Passou um tempo na casa de uma tia no Aracaju, e voltou, depois que o patrãozinho foi embora. Pra bem dizer: logo que vosso pai morreu, o que se deu pouco tempo depois que o menino também arribou. Nunca se ajuntou com ninguém. Morava ali, bem ali; dá pra ver aquela casa arriada junto do tamarindeiro? Na baixa acolá plantou muita cana, bem na quadra onde o prefeito disse que ia fazer um conjunto de morar, mas guardou o dinheiro pra outra precisão.Tá prestando atenção nesse nego véio? Era um canavial de seis cortes pra riba!

Sim, sinhô, discurpe a arenga.Tô caducando. É que o arrodeio acode muito. Mas foi pra isso que Vossa Excelência veio. E quem num sabe? Vosmecê deixe eu puxar um pouco pela ideia...tem bem uns dois anos que ela morreu.”




Paulo Fernando Morais

Paulo Fernando Morais é Jornalista e Escritor